sexta-feira, 9 de abril de 2010

Implosão de imposituras não factuais de um mundo, até, então, sem verbo

Ora, dizia-se, na contemporaneidade antiga
diante de uma fotografia
que aquela imagem valia
mais que mil palavras
agora, afirmo, que qualquer imagem
fixa, parada, em movimento,
fala mil palavras
mil opiniões
mil raciocínios
mil sensações
emite milhares de sons
orais, instrumentais,
corporais, emocionais, racionais,
iguais, desiguais,
espirituais,
intelectuais,
reais,
eruditos, ditos, bem ditos
malditos
ou não,
vociferados à revelia
à calmaria
à rebeldia
à covardia
à ironia
à idiossincrasia
à hipocrisia
que a verdade instantânea
pontua, carimba e sela à quente
e não diferencia
a palavra
o verbo
a oração
(desde que se saiba, ou seja, houve um aprendizado)

Saneamento básico familiar e escolar

Que bom que cheguei aos 56 anos sem tropeçar no meu próprio cocô
e nem dos outros
Primeiro, fiz as necessidades direitinho
na privada
dando descarga
limpando a bunda
jogando o papel higiênico no cesto de lixo
e lavando as mãos
com sabonete na pia.
Depois, escovando os dentes após cada refeição
e à noite
antes de dormir
Ah, banho de manhã e à tarde,
porque moro abaixo do Equador
e é chuva e calor
mais calor
quase o tempo todo
das quatro estações.
Até no frio tomo banho.
Porque tenho 56 anos?
Não,
porque fui ensinada e educada assim
desde pequenininha.
Em casa e na escola.
E vacinada, desde pequenininha.
E obrigada a estudar se eu quisesse passar de ano,
desde pequenininha.
E a trabalhar, desde pequenininha
se eu quisesse crescer mais.
Ah, esqueci de dizer que meus pais eram pobres e trabalhadores,
mas não eram sujos e nem ladrões.
Para que servem hoje família e escola?

poesia transfigurativa pálida

Caiu de quatro minha cara no chão
enquanto meus olhos esburacavam
a macilenta escuridão
da madrugada
que parece pegajosa na TV
lá estava em decúbito dorsal
a pena, uma única pena
de toda a asa frontal
da compaixão
numa fresta lamacenta
malcheirosa
quase negra
imóvel
descendo a ladeira de lixo
decomposta
branca e suja
suja e branca
quase irreconhecível
Era só mudar o canal
- um corpo na sombra
quente e
agasalhado -
frente a frente
tragédia e morte
se agarram ao sôfrego
esponjar do terreno borbulhante
de veneno e gás,
insólitos,
reféns de
um sólido outono
diferente
afeito a trâmites legais
por suas destemperanças
irreverentes,
imagine,
boicotar pretensões existenciais
incluindo moradia, trabalho, alegria,
longevidade
ainda que na bacia de almas
baldias,
mas, se somos seres
anônimos,
portanto invisíveis,
quem nos pode ver?