segunda-feira, 24 de maio de 2010

a casa recebeu a primeira inspeção


em março, deste ano,
iniciou-se a romaria
da valiosa confraria alada.
mesmo curiosa
a séria inspetoria
não fez vista grossa a nada:
beija flores e canário da terra
tão logo abrimos o jardim
vieram verificar se nossa
permanência estava correta.

um convite explícito e descarado à morte, cega à cor e sexo.olhos abertos para o preconceito e descaso

Pegue seu carro novo,
tecnologia de última geração,
- a sua -
saia da garagem do prédio
um labirinto de colunas estreito
e chegue às ruas,
a maioria delas projetadas
para carroças e fuscas
Se sair ileso, enfrente
as avenidas, projetadas
para muito mais fuscas e fiats 147
com ônibus urbanos, coletivos, furgões de entrega comercial.
Se conseguir superar, sem um arranhão,
semáforos desencontrados,
os 'inteligentes',
desviar de motos, mais caminhões, ônibus, bicicletas,
alcance as rodovias,
pistas duplas, triplas,
projetadas para mais filas de fiats 147, fuscas turbinados,
motos,
outra para caminhões e ônibus.
Ora, seu carro é sedan luxe, gran, possante,
leva filhos e sogros,
babá,
cineminha portátil,
porta copos e porta guloseimas
nada saudáveis,
som, animal de estimação e air bag;
pede a quarta pista, em quinta marcha:
umas que você usa seus próprios membros,
outras em que se utiliza dos membros do carro...
O tempo é o velocímetro 220,
a partida e chegada,
impacientes
ditadas pelo horário global, executivo.
Na sua cabeça funciona o seguinte:
uma via para lentos
outra para ultrapassados,
mais uma para fracassados
e a sua,
veloz, família, amante, negócios.
'Lá vem a troupé dos bem sucedidos,
pela esquerda, a mais de 140km/h'!
Lá pelas direitas, todos aqueles
que você superou com a herança do vovô,
da vovó, dos irmãos e tios,
todos destros em pista simples.
Reles seres motorizados.
No caminhão, por outras vias de dúvidas, aquele monstro que não fica nem na
direita, nem na esquerda, direito,
sai pelo meio, por qualquer lado,
porque ele é o outro e
porque para o outro, você é um traste riquinho, executivo,
não pega de verdade no pesado,
nem tem veículo, só um carro,
que alimenta seus filhinhos até inflá-los à obesidade,
sua escolinha paga, sua mulherzinha pavoa,
sua namoradinha à toa, seu celularzinho
cheio de gols e torpedos.
Sem dúvida, para o outro, você já virou chiclete.
Seu mustang vira um pangaré.
No meio da pista , os temerosos, os tranquilos,
mas de olho no retrovisor,
que anseiam pela vida boa, tanto quanto você.
Também acham que têm o melhor carro de passeio ,
a namorada mais gostosa, com a vantagem: sem filhos e sem sogros.
Ousam ultrapassagens em via segura.
No amontoado de desatinos, lotados daqueles que como você grudam em traseiras e só sabem andar enfileirados,
você acha que exista um ser à parte de motoristas: mulheres,
dessas que , na sua concepção, só estão atrás do volante
viúvas, sem namorado, separadas, perdidas, querendo,
sem noção.
De repente, lá vão elas, o ultrapassam,
encolhem sua cueca,
vêem sua latinha de cerveja no meio da pista,
fazem cair seus cabelos, diminuem sua conta bancária,
aumentam gases em sua barriga,
aceleram suas coronárias,
municiadas com armas malignas no trânsito:
salto ou sandália, pisando fundo e delicadamente no acelerador,
deixando sua imagem gloriosa cada vez menor no retrovisor.
Estes seres à parte de sua preciosa direção
deixam você , os carros de bois, fiats 147, fuscão,
jumentos, belinas, corcéis, paratis, gols quadrados, monstruosos caminhões, réplicas , na mesma faixa de rolagem.
Agora, pense, raciocine: mexa tudo issso na mesma panela asfáltica do governo federal,
estadual, municipal e vicinal.
Lá vai você e seu turbinão, zero km, reluzente, barranco adentro, precipício afora.
Breque...
Pausa em comoção.
Estado de coma.
Choque.
Seus pulmões reagem, seu coração não se afoga.
...
Lá vem você em duas rodas, em câmera lenta, acionadas pelas mãos,
trêmulas,
depositando buquês de flores no túmulo da família.
Muitas vezes, na família do outro.
Rodovias brasileiras, a sua cara igual a do outro.
Quem está na contramão?