Tweet

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Fábula do papagaio testamenteiro (segundo início do começo)

MOOG E ROMEU (14/10/2003 - 10:45) São Paulo


Ali mesmo, na Alameda Santos com a Rua Pamplona , era 1976.
Do 16.o andar, apartamento 1612, via-se o Parque Trianon , a praça Alexandre de Gusmão, o Dante Alighieri, filas duplas de mães e seus filhos barulhentos, espaçosos, bem amparados, predominando além de simples quadriláteros urbanos.
Em dois quartos, sala, banheiro, cozinha , mais areazinha de serviço, ardia na frigideira uma omelete francesa, à la Paulo - fotógrafo dos Shopping e City News, que dirigia um karman-ghia preto, o famoso patinho feio .A fritada exigia cuidado e capricho, mesmo no instantâneo da fome. Era o que havia na geladeira: nada além de ovos, mussarela, salsinha, leite, ingredientes reféns de uma tarde de sexta-feira paulistana. Após bater gemas e claras com um garfo e no pulso, sem muitas bolhas de ar, um fio de óleo preparava o recipiente aceso para assar o líquido denso, leitoso, já tomando ares de panqueca cremosa - sobre ela esfarelava-se grosseiramente o queijo, mais atraente ao ser polvilhada com um susto de cheiro-verde , rasgos minúsculos de cebola, ambos os lados crestados igual e cautelosamente, moldada no fundo e nas bordas. Pronta, era só rocamboleá-la, então, num gesto de ousadia e digno de malabarista. Que ficava apenas na imitação de algum gourmet.
Bem diferente , acontecia lá fora, na vertiginosa Avenida Paulista, um emaranhado de veículos e luzes, vitrines do dia e da noite, ininterruptas, cruzando ares tradicionais e modernos, a voracidade de transeuntes e ônibus monoblocos, pesados , que faziam a mentirosa simbiose entre um destino e outros. O meu era a Fundação Cásper Líbero, ali, pertinho do desencontro comigo mesma. À tiracolo , o proseio incessante de José Riviti, intraduzível melhor amigo, paulistano-mor.
No ar, buzinas e ronco de motores , óleo diesel, esgoto, patchouli e almíscar.
No anoitecer, antes de chegar à Al. Eugênio de Lima, ao chopp e às mesas na calçada, feito oásis à beira de estacionamentos itinerantes, forrávamos a ansiedade com mostarda e molho tártaro, próprios da mini-lanchonete MOOG, um corredorzinho espremido e à salvo na Rua Pamplona - famoso no pedaço - balcão grudado com banquetas e mesinhas rentes à parede-vagão. Não mais que 18h e lá estava estalando o sanduíche de pão grosso, quente, queijo derretido , na chapa, escapando tomates e alface, um luxo para uma interiorana , nascida à beira do rio pardo, experimentando, então, o melhor do cardápio, que incluía maionese.
O som de São Paulo, ouvíamos através da eclética Eldorado FM . Sintonia que se dava de repente, sem chance para estranhezas e arrependimentos. Na Jovem Pan, uma voz alegre iniciava a programação com o inusitado " Saint Paul du mon petit coeur..." e a cidade prevalecia, com o refrão do ano: "amanhece trabalhando, não sabe adormecer..."
Tudo o que eu queria era dormir até tarde, descer para o térreo sem interrupções, ver o metrô inaugurar uma década , chegar à Praça da Sé sem penitências pessoais e razoáveis, seguir até a Mooca , olhando a proa da via Alcântara Machado. Em pé, no monobloco coletivo , Mercedes-Benz, pela Brigadeiro Luís Antônio, Av. Liberdade , não havia pausa para o frango xadrez ; depois , Praça João Mendes Jr. e só pensava no Almanara, Largo do Arouche, charutinho de folha de uva .
Era natural também espichar-se o tempo até a esquina da Consolação com a dr. Arnaldo - Baguete à vista - um fôlego na madrugada, depois de quase tudo, recheado com tenras fatias de presunto. Comia-se em pé, os cotovelos apoiados nas mesinhas de pouca circunferência e altas.
Ao lado, o furtivo assanhava-se no Nuestro Mondo .
A metrópole fervia com seis milhões de habitantes e já era muito. A cidade , aleatoriamente, mudava a minha história de lugar. Bastava eu dormir e acordar, lá estava São Paulo onde não estava antes. E assim sucessivamente.
Um dia fui ao restaurante Brahma. Uma atmosfera antiga e vermelha, cadeiras almofadadas, com cheiro de cigarro e bebida, cuja decadência era o que mais atraía. Lembro-me de Arruda Camargo, grossas e despenteadas sobrancelhas brancas, timoneiro do velho jornalismo paulistano, abrindo espaço no salão vazio para que degustássemos uma iguaria da gastronomia alemã: joelho de porco e salsichão branco, acompanhados de purê de batata ao molho páprica, suando cervejas geladas , que derretiam provincianismos latentes. Pelo menos por algumas horas...
Do outro lado, na Lapa, Libânia, madrinha familiar lá da rua Bandin 33, City, rendia , na travessa de louça ovalada, tenras alcachofras , recheadas imediatamente com miolo de pão banhado em azeite , pedacinhos de salsa, acrescidas de segredinhos de tempero bem somados delicadamente , pétala por pétala, já cozidas sem exagero. Depois, só desfolhar o inesquecível.
Retornar ao apartamento no Cerqueira César ,à noite, era uma Tv em preto e branco. Como os grandes gibis nas bancas. No apartamento ao lado, Odete, ex-modelo de Dener, referia-se a todo mundo como "pessoa", senhora de voz potente e amiga também de Perinha, com vestidões floridos, unhas exageradas e uma longa prosa ao caldo de café e cigarro. Ela foi nossa intérprete junto à Lella Lombardi , no Hilton, porque falava italiano e Marta e eu tínhamos que entrevistar a única piloto de Fórmula Um , filha de açougueiros, para o Shopping/CityNews.
No ano, incandescentes eram as numerosas salas de cinema, assediadas quase que diariamente. As melhores estréias inauguravam longas filas, pulverizadas em sessões contínuas.
Shows e teatros alimentavam mentes vorazes, que consumiam estranhas peças e musicais inesperados. O elenco despejava em nossos colos Tide Nogueira, José Celso Martinez Correa, Bethânia, Gal, Caetano, Gil, Rita Lee, Lúcia Turnbull , Fagner, Ednardo, Belchior e Cida Moreira.
Elis foi um capítulo à parte, junto à casa de psicotransoterapia, um surto da época, com Roberto Freire, Miriam Muniz e Sílvio. Ruth Escobar lá também deixou suas nuances .
A cidade em cartaz oferecia rumos após cada espetáculo. Era como se a metrópole paulistana tivesse mesa cativa na Cantina do Amico Piolim, no avarandado do Planeta e o batismo da cultura só se realizasse no quadrilátero da Praça Franklin Roosevelt, ao som de Alice Cooper .
No Opala verde-limão, com máscara preta, Maurílio -Burguer dirigia nosso grupo.
Aos náufragos da madrugada, como o anjo barroco Antônio Novaes, Dú -Jundiaí, Willian - dr. Pêssame, desapartados dos privilegiados redutos intelectuais da parada, permanecia o plantão do Mais Um e Eduardo's , forrando as calçadas com mesas e seres bizarros, recém-saídos de algum lugar inimaginável, mas por dentro de tudo ao redor. Confundiam-se e nos confundiam. Eram e não eram famosos, artistas, ilustres, vagais, geniais.
Não distante, entretanto, das ruas Martinho Prado, Avanhandava, Augusta e Santo Antônio, conhecidas pela dupla mão , abertas ao conhecimento e ao novo, ainda assombravam a todos , acintosamente , os porões militares da brutalidade, da tortura e do atraso. Tautologia, dizia-se , na época. Um imenso contraste, que aterrorizava num silêncio covarde, surpreendente e ameaçador. Inútil.
Logo mais, na rua Bela Cintra, deslumbravam e desbundavam o pânico , indescritíveis freqüentadores da Boate Medieval.
Afora, muitas noites adentro , descendo os seis andares desde a Cásper Líbero, ficávamos acuados no amplo pátio de entrada do Gazeta, olhando as escadarias iluminadas pelas luzes das viaturas que surgiam repentina e perversamente na Avenida, sirenes ligadas. Nada além deles. Tudo além de nós. Os corações disparavam.
À pé, duas quadras e meia, estávamos em casa. Meia-noite. Madrugada inteira. Era difícil voltar ao normal. Era insuportável ser normal.
No outro dia, de novo, a cidade estava em seu ritmo frenético , impessoal, incessante.
Uma boa perspectiva era ir à Pizzaria do ROMEU, ex- jogador do Palmeiras, numa concentração de energias para o final de tarde, ouvindo tangos e boleros, após o trabalho na Rua Dr. Almeida Lima, à bordo do troleibus linha 305, ou regressando da faculdade noturna de Jornalismo. Viram ali o Ademir da Ghia ?
Hoje, em Ribeirão Preto, percebo o quanto ainda vivo, respiro, durmo e acordo São Paulo.
O sobressalto do passado, que ultrapassa o presente e , correndo de costas, verte frontalmente a contemporaneidade para o futuro , é um assunto paulistano para mais 450 anos, com certeza.
























Nenhum comentário: